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Descrição de chapéu juros

Possíveis confusões da Lei do Endividamento

Proteger as finanças dos mais vulneráveis é um objetivo nobre, mas lei é mal concebida e ainda há espaço para piorar

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Não tem rendido manchetes no noticiário econômico a importante discussão que ocorre no Poder Executivo sobre a regulamentação da Lei do Superendividamento, pela qual a definição de um determinado conceito pode alterar as regras de funcionamento de diversas modalidades de crédito. A ideia, de espírito similar ao de diversas outras, bem-intencionadas e que, no entanto, atrapalham mais do que ajudam, é a seguinte: o devedor não poderá ser legalmente cobrado por uma dívida que, se efetivamente paga, colocaria sua renda líquida abaixo de um certo "mínimo existencial".

Proteger as finanças dos mais vulneráveis é um objetivo nobre, mas desde a largada a lei é mal concebida e ainda há espaço para piorar. O impacto adverso tem potencial para gerar um colapso na oferta de crédito.

Está fora de discussão que algumas taxas de empréstimo são tremendamente altas, a exemplo das taxas do rotativo do cartão de crédito, de exorbitantes 350% ao ano (em média).

Há certo consenso de que três frentes de trabalho são necessárias para enfrentar esse problema: (i) campanhas de conscientização e educação financeira, (ii) aumento da transparência e estabelecimento de medidas microeconômicas que sigam aumentando a competição entre as instituições financeiras e (iii) revisão de tributos e de elementos de incerteza jurídica que encarecem o crédito.

A Lei do Superendividamento pode, na realidade, exacerbar o problema da incerteza jurídica. Hoje em dia, milhares de brasileiros utilizam o crédito de forma diversa, seja cartão de crédito, consignado, empréstimo de forma geral ou como meio de pagamento, e a maioria de seus usuários não entra em atraso e não paga esse juro elevadíssimo, em que pese o aumento verificado durante a pandemia.

A lei poderá afetar adversamente todos aqueles que pagam suas operações em dia, e estamos falando de trilhões em movimentações financeiras. O impacto macroeconômico é potencialmente devastador.

Um dos maiores problemas com a ideia do mínimo existencial é que ele em si é um conceito difuso demais. O mínimo deve incluir o quê? Alimentação e aluguel? Mas a partir de que ponto a alimentação deixa de ser absolutamente essencial? (A sobremesa entra no cálculo? Apenas arroz e feijão, ou também o filé mignon para alguns?) E o aluguel? Como se faz a contabilidade de tudo isso? Ademais, por que descartar a solução de o devedor mudar-se para um apartamento mais barato para assim poder pagar a conta de um empréstimo ou do cartão?

Pois é, o negócio é complicado já como princípio; imagine na hora de pôr em prática, cada um assumindo a definição de "mínimo" que mais lhe apetece! Já está acontecendo, aliás. Órgãos de proteção ao consumidor estão largando na frente e definindo seus próprios "mínimos existenciais".

E não nos enganemos: nos milhares de fóruns país afora, cada juiz terá sua própria noção de mínimo existencial, gerando enorme incerteza e mais litígio e dores de cabeça para os emprestadores. Mas quando a dor de cabeça fica forte demais, o afligido toma alguma medida. Analgésico em casos típicos; redução da oferta de crédito no caso em questão. E justamente para quem? Para os menos favorecidos financeiramente, para os que caem dentro dos limites impostos pelo mínimo existencial.

Como minimizar os danos de uma lei que, ao que tudo indica, devemos tomar como irreversível a esta altura das discussões? A melhor opção é abandonar por completo a ideia de definir o indefinível. Abortar a coisa toda. A segunda melhor é evitar o pior impedindo que a emenda saia pior do que o soneto, minimizando a incerteza econômico-jurídica associada à regulamentação.

Vejamos os problemas com algumas das propostas de regulamentação apresentadas.

Uma delas defende que o mínimo seja dado pelo valor do salário mínimo. Certamente tem a vantagem de ser clara. Mas como aproximadamente metade da população tem renda nessa faixa, todos esses estariam automaticamente excluídos, por exemplo, do mercado de cartões de crédito. Faz sentido? Queremos excluir todos os pobres do uso do cartão? Outra ideia que circula é a de fixar o mínimo em 30% da renda (estranho para quem ganha, digamos, 20 mil por mês, não?).

Bem, se esse for o critério, as pessoas de renda mais baixa que adquirem um carro à prestação ou um crédito imobiliário não poderiam ter nenhum outro tipo de crédito. De novo, será que os proponentes pensaram nessa consequência? Muita gente que tem crédito consignado já tem 30% da renda presa aí.

Operacionalmente, como saber exatamente as dívidas prévias de cada um? E a renda, num país que tem a metade da força de trabalho na informalidade? Mais: se o usuário se equivoca sobre seu comprometimento da renda, e se o banco concede determinado limite ao cliente, seja na conta corrente, seja no cartão de crédito de crédito, quem é culpado perante a lei?

Por fim, a mais absurda das propostas: considerar o limite transacional do cartão, utilizado para pagamento mensal, como algo a ser abatido da renda no cálculo do mínimo existencial! Mas e todos aqueles que não chegam nem perto desse limite?

Contornar todas essas dificuldades é, na realidade, tarefa quase impossível. Se é para tentarmos experimentos não ortodoxos nessa área, melhor seria impor um teto ao juro do rotativo, de validade nacional, como é o caso do cheque especial. Proíbe-se uma taxa acima de, digamos 180% ao ano, e deixa-se para os bancos a decisão de quanto conceder de limite a cada cliente.

O pior dos cenários é, contudo, termos um mínimo existencial livre, leve e solto. Se cada Procon do Brasil, ou cada juiz em sua comarca tiverem discricionariedade para escolher o mínimo que lhe pareça o mais apropriado, o mercado de crédito pode facilmente colapsar. Quem sai perdendo? Todos.

Se o mínimo existencial for mesmo inevitável, que ele seja fixo nacionalmente. E que seja, de fato, mínimo.

Mauro Rodrigues (professor de economia na USP e autor do livro "Sob a lupa do economista") e equipe do Por Quê?

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