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Tirania digital limita poder de escolha no mundo pós-pandemia
| Foto: Pixabay

A pandemia do novo coronavírus trouxe não apenas medo e incerteza para a população mundial. Trouxe ainda a desconfiança de tudo e de todos – elemento fundamental à proliferação de fake news e de qualquer teoria da conspiração bem sucedida. Inserida em um contexto de globalização e divisão ideológica, a crise sanitária reuniu os ingredientes necessários para que a humanidade interconectada vivesse um momento sem precedentes em sua história. A ansiedade, o estresse, o medo da morte, associados a um excesso de informações provenientes de fontes não confiáveis, deixaram as pessoas ainda mais preocupadas e desinformadas, sem saber como agir ou a quem recorrer.

Nesse contexto, em meados de 2020, o Fórum Econômico Mundial anunciou o tema da cúpula prevista para janeiro de 2021: “O Grande Reset”. Seria a primeira edição do evento em Davos após a pandemia, mas que foi adiada para maio em Cingapura. Segundo seus organizadores, a tragédia alertou para a necessidade de construção de um mundo mais sustentável e de um modelo econômico resiliente a uma crise global de saúde. E os líderes governamentais e empresariais do mundo optaram por mudanças na tomada de decisões tradicional.

Essa elite rica e poderosa não precisa conspirar para propor uma redefinição na forma de viver dos cidadãos comuns: a cobrança por investimentos socialmente responsáveis abriu uma oportunidade enorme para isso, mesmo à custa dos direitos democráticos de muitos. Mais controle nos empreendimentos, maior intervenção governamental e, ao mesmo tempo, menos consumo desenfreado e menos liberdade individual compõem o “novo normal”. Tudo com o suposto consentimento do consumidor, sem meios de opinar, sob alegação, por parte desses líderes, de empenho na construção de um mundo ambientalmente saudável e inclusivo, onde os egoísmos pessoais devem dar lugar a preocupações com a saúde do planeta e com condições mais igualitárias de vida.

As empresas alardeiam que estão repensando seu papel na sociedade, que os indivíduos precisam se conscientizar que a segmentação visando atender grupos diferenciados deve ser limitada em prol da maioria, da grande massa consumidora, embora os lucros desses empreendedores permaneçam intocáveis. Nada de café com sabor, cremoso e balanceado; apenas café, sem mimos. Tal comportamento deve se repetir nas demais áreas, não apenas na alimentação: turismo, lazer, saúde, educação, segurança... tudo necessita se reinventar. No mundo pós-pandemia, os padrões de consumo devem ser mais conscientes e responsáveis. A defesa de interesses corporativistas pelos donos do mundo, ao se fundamentar em metas que garantam a sobrevivência da humanidade, consegue receber a aprovação da sociedade sem resistência, rumo à homogeneização das diferenças e à imposição de padrões únicos.

Enquanto os canais digitais se fortalecem cada vez mais e a redução de atividades presenciais persiste, os negócios se adequam até nos setores mais complicados, como a prática de exercícios físicos, as consultas médicas e o trabalho. Isoladas, as pessoas tendem a se comunicar e a expressar suas opiniões com maior frequência pelas redes sociais, o que faz crescer também as chances de serem monitoradas no que dizem e no que repassam. Dependentes das grandes empresas de tecnologia em tempos complicados de pandemia, internautas ficam crescentemente expostos à vigilância, ao rastreamento e à perda de privacidade. Alguns até mesmo tiveram seus direitos violados para que CEOs super-ricos pudessem impor seus modelos de negócio.

Situações extremas como a pandemia podem se tornar a desculpa perfeita para que excessos no controle das atividades humanas sejam cometidos em nome do combate à Covid-19, sem a contrapartida das Big Tech, em termos de transparência, na maneira como atuam. Ao tentar navegar em um site ou abrir uma notícia, internautas se deparam com alertas como o seguinte: “Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições”. Sem pensar, o indivíduo aceita as condições para continuar sua navegação. Mas, aos poucos, aprende a questionar e a não aceitar a coleta ou a comercialização de seus dados pessoais por plataformas digitais, chegando mesmo a trocar aplicativos habituais e populares por outros alternativos e desconhecidos, porém com a vantagem de serem menos invasivos.

A pandemia trouxe, ainda, uma pausa reflexiva forçada para as pessoas. Muitas perceberam que o modo de vida em vigor pode e deve ser mudado. Ninguém poderia prever que em 2020 as prioridades seriam as compras de máscaras e álcool em gel, o armazenamento de alimentos e medicações, as compras on-line, o delivery, a conectividade virtual. O que não significa que essas mesmas pessoas concordem com as diretrizes das gigantes de tecnologia que multiplicaram seus valores de mercado, por meio de lucros e receitas crescentes. Até pouco tempo atrás, os indivíduos não se preocupavam nem tinham noção exata sobre o uso de seus próprios dados pelas gigantes tecnológicas. Consideravam “curioso” o fato de terem procurado um hotel ou uma camisa na internet e, logo a seguir, anúncios com esse mesmo hotel e a mesma camisa aparecerem insistentemente nas telas de seus PCs ou smartphones.

A verdade é que cada vez mais a captura de dados da rede se impõe sobre a sociedade moderna. Na maioria das vezes, essa captura é feita à revelia dos interesses dos usuários e os dados viram bens para uso econômico ou político. Enquanto milhares morreram de Covid, pequenos negócios fecharam suas portas, problemas mentais como depressão se agravaram e o isolamento deixou o mundo sem alternativas fáceis, houve empresas que lucraram como nunca antes na contramão da crise. Amazon, Apple, Zoom, Microsoft, Facebook e Samsung estão entre as top 100 corporações que mais prosperaram em 2020. A China tem uma performance melhor que os Estados Unidos, com mais empresas na lista das top 100. A grande maioria dessas empresas é ligada à tecnologia e à saúde. O setor de alimentos também experimentou ganhos acima da média.

Esses empresários poderosos dizem querer “salvar o mundo”, pregam um capitalismo que proporcione um futuro mais igualitário, porém com a manutenção de seus privilégios. Querem isenção de impostos, empréstimos a juros baixos, além de usarem seu poder para interferir na legislação em vigor, pressionando por apoio e subsídios do governo federal. Querem, ainda, o controle total sobre o cidadão e usam sua influência para adequar as ações políticas aos seus interesses econômicos. Como acreditar que os mais ricos do mundo realmente se importem em criar um mundo mais justo?

Nesse momento em que a pandemia mostrou a necessidade de uma nova governança, de transformações no curto prazo, a iniciativa revolucionária não pode partir dos megaempresários, mas da população, sob risco de manipulação por meio da imposição de regulamentações globais. Já estão ocorrendo mudanças no período atual de transição. Privilegiar uma ideologia em detrimento de outra, impor um pensamento único, criar um cenário de medo a partir de instituições de Justiça superiores, banir adeptos sob quaisquer pretextos, atentar contra a liberdade de expressão são, no mínimo, formas de intimidação, o caminho trilhado até agora. Todos já são “algoriticamente” controlados, sem receber um tostão em troca pelas cifras astronômicas geradas com os dados coletados nas redes. As grandes corporações Big Tech, hoje, já decidem quem pode e quem não pode existir virtualmente. Se desfrutarem de mais concentração de poder, pode não haver mais espaço no mundo para a privacidade, a liberdade de opinião e para a própria democracia.

Simone Salles é jornalista e mestre em Comunicação Pública e Política.

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