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Siderurgia aposta em 'aço verde' por sustentabilidade

Indústria do aço, uma das mais poluentes do mundo, quer reduzir a emissão de carbono com novo método sueco

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Michael Pooler
São Paulo | Financial Times

Arranha-céus e pontes, carros e navios de cruzeiro, armas e lavadoras de roupas. Tudo isso tem algo em comum: o aço.

Como insumo básico dos setores de mecânica e construção, o aço é o metal mais usado do planeta, e serve como fundação da moderna economia industrial.

Desde que um método para a produção em massa dessa liga metálica baseada em ferro foi desenvolvido pelo inventor inglês Henry Bessemer, na década de 1850, surgiu toda uma indústria, que hoje movimenta US$ 2,5 trilhões ao ano e emprega milhões de pessoas.

Mas da mesma maneira que os setores de petróleo e carvão vieram a enfrentar pressões intensas nos últimos anos, o papel do aço na crise do clima vem sofrendo escrutínio muito mais intenso.

Do cinturão industrial decaído dos Estados Unidos ao coração da indústria chinesa, a maneira dominante de fundir o ferro bombeia para a atmosfera quantidades imensas de dióxido de carbono, o principal componente no aquecimento global causado pela atividade humana.

Excetuada a geração de energia, o setor de ferro e aço é o maior emissor industrial de dióxido de carbono. Responde por 7,9% do total de emissões diretas causadas por combustíveis fósseis, de acordo com a Associação Mundial do Aço.

É um total maior do que o gerado em emissões por toda a economia da Índia. À medida que a mudança do clima ganha importância na agenda política mundial, e que muitos governos assumem compromissos para com metas ambientais ambiciosas, uma corrida contra o tempo foi iniciada para o desenvolvimento de versões menos prejudiciais ao meio ambiente desse material forte e versátil.

“O aço é um material muito importante para a sociedade moderna. Há muito tempo ele vem sendo produzido de minério de ferro e com o uso de carvão”, diz Martin Pei, vice-presidente técnico da SSAB, uma companhia sueca que é uma das líderes nos esforços de inovação.

“Se desejamos realmente contribuir para as metas ambientais estabelecidas pelo acordo de Paris, existe um consenso generalizado de que só a obtenção de novos avanços em termos de eficiência nos altos fornos não será suficiente. Tecnologias revolucionárias são urgentemente necessárias”.

Com a introdução do uso em massa de energia renovável, nos últimos 10 anos, e com os compromissos assumidos recentemente por muitas das maiores montadoras mundiais de automóveis quanto a adotar motores elétricos, indústrias pesadas como a siderurgia, o setor de cimento e a petroquímica, que requerem o uso de calor extremo em seus processos, são uma das próximas fronteiras na redução das emissões de carbono.

Para cumprir as metas mundiais quanto à energia e ao meio ambiente, as emissões de poluentes do setor siderúrgico precisam cair em pelo menos 50% até a metade do século, de acordo com a Agência Internacional de Energia, e o objetivo posterior será reduzi-las a zero.

Alguns dos maiores grupos de siderurgia do planeta, como ArcelorMittal, Thyssen e Baowu Group, da China, estão avançando no processo de transformar conceitos de laboratório em realidade industrial. Alguns chegaram a anunciar metas para um total líquido zero de emissões de poluentes.

Faustine Delasalle, sócia da Systemiq, uma consultoria de sustentabilidade e investimento, diz que o nível de desenvolvimento técnico é encorajador. “Ainda não estamos prontos para levar produtos ao mercado, mas o progresso é relativamente rápido e podemos esperar uma primeira onda de locais de produção com emissões próximas de zero antes de 2030”.

Os planos mais ambiciosos envolvem abandonar um princípio para transformar rochas em metal descoberto na idade do ferro, e substitui-lo por um método que envolve usar o gás hidrogênio, “limpo”, como nova fonte alternativa de energia.

No entanto, reformar uma indústria monolítica, lenta e poluente que produz dois bilhões de toneladas de material ao ano será uma tarefa enorme.

Entre os obstáculos está o nível de investimento requerido, que pode chegar às centenas de bilhões de dólares –o que não é fácil em um setor prejudicado pelo excesso crônico de oferta e por oscilações ferozes de lucratividade.

Aciaria da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), onde é feita a transformação de ferro líquido em aço líquido, em Volta Redonda (RJ) - Antônio Gaudério - 08.set.06/Folhapress

A ArcelorMittal, maior companhia siderúrgica da Europa, estimou que eliminar as emissões de carbono em suas instalações no continente de forma a se enquadrar à campanha da União Europeia para zerar as emissões líquidas de gases causadores do efeito estufa até 2050 custará entre 15 bilhões e 40 bilhões de euros.

“Essas tecnologias aumentarão o custo de nosso aço. Não são baratas, e os clientes precisam estar prontos a pagar”, diz Lakshmi Mittal, o presidente do conselho da empresa.

Metas de redução de emissões

O motivo para que a produção de aço cause volume tão grande de emissão de carbono se relaciona à principal rota para extrair o ferro de seu minério.

Imensos altos-fornos aquecidos até temperaturas superiores a mil graus são carregados com o minério, cal e coque, um combustível derivado do carvão metalúrgico que remove as moléculas de oxigênio do óxido de ferro.

Um subproduto da reação química causada é o dióxido de carbono.

“Quantidade significativa de energia é requerida a fim de aquecer o minério de ferro, derretê-lo e promover a separação entre o oxigênio e o ferro na molécula do óxido de ferro”, explica Ryan Smith, analista sênior da consultoria CRU.

“Todos os portadores de energia com menor custo têm o carbono como base. Isso, combinado às suas propriedades quando aquecidos a temperaturas muito altas, é o que torna o coque tão importante para a produção de ferro e aço, e substitui-lo é realmente difícil”.

Embora os líderes com inclinações ambientalistas sonhem com uma “economia circular” na qual a extração de recursos e a geração de resíduos seja minimizada, no caso do aço –que já é o material mais reutilizado do planeta– a reciclagem não basta como resposta.

Os fornos elétricos de arco (EAF, na sigla em inglês), que derretem sucata metálica em lugar de converter matéria-prima, são menores, mais flexíveis e emitem apenas uma fração dos poluentes emitidos pelos altos-fornos convencionais.

Hoje eles respondem por apenas 30% da produção mundial de aço. Mas a oferta de sucata metálica é limitada, e os EAF nem sempre são capazes de produzir material da qualidade requerida para certas aplicações, como as automotivas.

Consequentemente, especialistas dizem que é provável que sempre vá existir necessidade de aço “virgem”, mas produzido por meio de um método menos poluente.

Acontecimentos geopolítico recentes renovaram o ímpeto da busca por uma solução nesse sentido. Além de prometer um retorno dos Estados Unidos ao acordo de Paris sobre o clima, que envolve limitar o aumento da temperatura mundial a bem menos de dois graus centígrados, o presidente americano Joe Biden propôs criar uma agência de pesquisa sobre o clima com objetivos que incluem “reduzir o uso de calor gerado por carbono na indústria siderúrgica, de concreto e química”.

Outra declaração de intenções importante surgiu no ano passado quando a China anunciou uma meta de chegar à “neutralidade de emissões de carbono” em 2060. Isso exigirá uma reforma completa das usinas siderúrgicas do país, responsáveis por cerca de um terço das emissões chinesas de poluentes.

Como fonte de metade do aço produzido no planeta, a superpotência asiática exerce influência central sobre dinâmica do mercado mundial.

“A China hoje gera cerca de duas toneladas de dióxido de carbono por tonelada de aço que produz, enquanto na Europa as emissões são de uma tonelada por tonelada de aço produzida”, diz Michele Della Vigna, analista de investimento no banco Goldman Sachs.

“Em longo prazo, se torna importante que a China demonstre que suas exportações não causam mais emissões de carbono do que as de bens produzidos em outros países”.

Por enquanto, as iniciativas mais avançadas de redução das emissões de carbono acontecem na União Europeia –um reflexo de suas regras ambientais mais severas.

Uma das políticas fundamentais da União permite que empresas comprem e vendam certificados que cobrem as emissões de carbono que elas geram.

Sob esse esquema de comercialização de licenças, o preço de uma tonelada de dióxido de carbono subiu em 800%, de 2016 para cá, para quase 40 euros.

O período de carência, sob o qual certos setores recebiam licenças de emissão gratuitas, está chegando gradualmente ao fim, e as companhias passarão a enfrentar penalidades financeiras por poluir –ou terão um incentivo financeiro para mudar de rumo.

Com outros países já operando ou planejando lançar seus mercados de licenças de emissão, surgem sinais de que o dinheiro dos acionistas possa estar em risco caso as siderúrgicas não ajam para reduzir suas emissões.

“Não podemos manter o aço em seu ritmo atual e esperar atingir um total líquido zero de emissões”, diz Carole Ferguson, diretora de pesquisa de investimento na CDP, uma organização sem fins lucrativos que avalia questões climáticas.

“Francamente, em minha opinião o processo não está acontecendo com a rapidez necessária. Os investimentos precisam começar a ser feitos agora, para que a transição possa acontecer”.

Mas embora as companhias que trabalham com combustíveis fósseis tenham começado a sofrer pressão de seus acionistas, a compreensão dos investidores quanto aos problemas e soluções para a indústria pesada é menos clara, diz Wolfgang Kuhn, diretor de estratégias para o setor financeiro da ShareAction, uma ONG que promete investimento responsável.

“No caso do petróleo e do carvão, você sabe que eles precisam ser abandonados. No dos veículos com motor de combustão interna, a mesma coisa”, ele disse. “No caso do aço, é mais complicado”.

Redução por hidrogênio

Cento e sessenta quilômetros ao sul do círculo ártico, está em curso um experimento que tem por objetivo deixar para trás séculos de procedimentos metalúrgicos estabelecidos, por meio da exploração do elemento mais abundante do universo.

Aciaria da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), onde é feita a transformação de ferro líquido em aço líquido, em Volta Redonda (RJ) - Antônio Gaudério - 08.set.06/Folhapress

Em uma usina piloto em Lulea, no norte da Suécia, a SSAB em breve iniciará testes quanto ao uso do gás hidrogênio para redução de minério de ferro.

Segundo a companhia, isso resultará em emissões virtualmente zero de dióxido de carbono, e o único subproduto do processo será vapor de água.

Caso comprovado em nível industrial, isso seria nada menos que revolucionário. O processo se baseia no reaproveitamento de um sistema existente, chamado de “ferro reduzido diretamente” (FRD), que responde por apenas uma pequena proporção da produção mundial de aço.

As fornalhas que produzem FRD normalmente recebem injeções de gás natural. A SSAB em lugar disso vai usar gás hidrogênio puro, produzido em uma instalação conhecida como “eletrolisador”, acionada pelas abundantes fontes de energia renovável suecas.

O produto será um intermediário sólido, chamado ferro-esponja, que depois é encaminhado a um EAF, onde passa por uma mistura com resíduos de ferro e é refinado em forma de aço.Trabalhando em parceria com uma empresa de energia e uma de mineração de ferro, a SSAB enfrenta rivais que incluem a Voestalpine, da Áustria, e a ArcelorMittal, que desenvolvem projetos semelhantes.

“Do laboratório, sabemos que em princípio o H² é capaz, sob as condições corretas, de reduzir o minério de ferro a ferro metálico. Mas até agora ninguém o fez em escala industrial”, diz Lutz Bandusch, executivo sênior da ArcelorMittal, que já opera a única instalação de FRD-EAF da Europa.

Outro possível papel para o hidrogênio é substituir o carvão nos altos-fornos. Mas essa ainda não é uma solução siderúrgica completa. Para começar, o FRD centrado em hidrogênio gasoso pode ter de depender de minérios de maior teor, de acordo com alguns analistas. E há também a questão da disponibilidade.

“Aumentar a escala de produção do ‘eletrolisador’ e tornar mais acessível o custo geral do método H² mais eletricidade –isso será extremamente importante para que o setor siderúrgico decida se converter em larga escala e abandonar o uso de altos-fornos”, diz Pei, da SSAB.

O grupo sueco, que busca remover os combustíveis fósseis em todas as etapas do processo de produção siderúrgica, estimou que o metal de seu processo baseado em hidrogênio será inicialmente entre 20% e 30% mais caro.

“Acreditamos que o H² venha a ser a solução para chegar a emissões zero. A questão chave é o custo”, diz Della Vigna, do Goldman Sachs, que calcula que o processo se tornará economicamente viável quando o custo de uma licença de emissão de carbono atingir o valor de US$ 220 por tonelada.

Mas para que as usinas adotem em massa o hidrogênio, seria preciso uma expansão maciça da infraestrutura de energia renovável.

A Alemanha, por exemplo, requereria energia renovável adicional equivalente a cerca de 20% de seu consumo atual de eletricidade, a fim de converter seu setor siderúrgico ao FRD baseado em hidrogênio ecológico, de acordo com a Agência Internacional de Energia Renovável.

Isso demonstra que o setor siderúrgico só pode responder por parte da mudança necessária.

Abordagem audaciosa

Se eliminar de vez o dióxido de carbono ocupa uma das pontas do espectro, há outras iniciativas que pretendem impedir que gases escapem ou propõem soluções intermediárias que poderiam reduzir as emissões ao longo do tempo.

Em sua usina em Ghent, Bélgica, a ArcelorMittal está construindo uma instalação que transformará resíduos tóxicos de madeira em “biocarvão”, com impacto menor em termos de emissões, a fim de substituir parte do carvão usado nos altos-fornos.

No mesmo lugar, a ArcelorMittal está investindo 165 milhões de euros em equipamentos para capturar gases residuais. Micróbios os converterão em etanol, que pode ser reciclado em forma de produtos químicos contendo carbono, tais como plásticos, ou combustíveis.

No entanto, os ambientalistas que criticam os sistemas de captura, uso e armazenagem de carbono argumentam que eles são dispendiosos, não foram testados em uso mais amplo, e desviam a atenção quanto à causa central das emissões.

Kingsmill Bond, estrategista de energia no instituto de pesquisa Carbon Tracker, acredita que os métodos de captura, uso e armazenagem de carbono tenham um papel a desempenhar na indústria pesada.

“Mas nos 10% finais... Isso será necessário, mas como última peça, e não primeira”.Enquanto os pesos pesados da indústria lidam com um dilema que ameaça sua existência, o desafio é atrair novos ingressantes, com a esperança de sacudir um setor onde o desordenamento é uma raridade.

A startup americana Boston Metals, criada por especialistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e com investimento de Bill Gates, diz ter desenvolvido uma tecnologia para produção de aço virgem sem emissão de poluentes, usando a eletricidade.

Em um método que apresenta semelhanças com o da produção de alumínio, uma corrente elétrica passa por uma célula que consiste de um revestimento de aço com bordas de dois metros, contendo, do lado de dentro, o que a companhia define como “uma sopa de óxidos derretidos”, entre os quais minério de ferro.

Em contraposição aos altos-fornos de até 35 metros de altura vistos nas grandes siderúrgicas, a ideia é que a Boston Metal ofereça unidades pequenas e modulares para os locais de produção, passíveis de expansão para acompanhar a demanda.

O presidente-executivo da companhia, Tadeu Carneiro, descreve o processo como “o inverso de uma bateria”.“Injetamos eletricidade”, ele diz. “A célula libera um ferro muito puro ao qual podem ser acrescentados outros elementos para conseguir aço de alta qualidade”.

A empresa fundada nove anos atrás recentemente recebeu investimentos do BHP Group e da Vale, o que elevou seu capital total a mais de US$ 100 milhões, e o plano é comercializar seu método em grande escala a partir de 2025.

“Se tivermos o custo de eletricidade que os produtores de alumínio têm hoje, entre US$ 15 e US$ 35 por megawatt-hora, seremos competitivos mesmo sem impostos sobre as emissões”, diz Carneiro. “Isso realmente mudará o mundo”.

Se o objetivo é que o aço ecológico tenha impacto na luta contra a mudança do clima, o setor não pode tratá-lo como um produto de luxo para atender a um nicho de mercado.

O aço é uma commodity e o custo é rei; por isso, apoio dos contribuintes provavelmente será necessário durante a transição, enquanto as companhias tradicionais trabalham para tornar os novos processos de produção mais eficientes e competitivos.

“O governo europeu permitiu a imposição de tributos para que ele pudesse apoiar o crescimento do setor de energia renovável”, diz Mittal.

“Nós afirmamos que, da mesma forma, deveria haver um mecanismo ou estrutura de apoio ao setor siderúrgico, para que possamos investir e desenvolver os projetos [experimentais] e transformá-los em processos comerciais”.

Outra importante consideração para as autoridades é o comércio internacional, já que o aço é uma das commodities mais negociadas internacionalmente, com frequentes acusações de dumping a preços baixos.

Além de bancar projetos sustentáveis sob o programa “European Green Deal”, Bruxelas agora está preparando planos para “um mecanismo alfandegário de ajuste por emissões de carbono”, que imporia um tributo relacionado a poluentes sobre certos produtos que ingressem no bloco comercial.

A ideia seria impedir que produtos estrangeiros baratos e com forte impacto ambiental solapem as empresas europeias que estão investindo em tecnologias ambientais ambiciosas.

Mas mesmo que isso represente a criação de um piso de custo por emissões de carbono nos mercados internacionais, há quem questione se há números que encorajem a adoção das tecnologias mais limpas.

“Da perspectiva do custo e da análise econômica, ainda não vemos as condições certas para facilitar uma transição geral do setor”, diz Smith, da CRU.

Mas Doug Parr, cientista chefe da Greenpeace no Reino Unido, vê motivo para otimismo: “O ímpeto parece ser maior do que, digamos, nos setores de cimento e químico. A siderurgia pode bem servir como teste de como um setor deve conduzir o processo”.​

Tradução de Paulo Migliacci

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