A era dos dados sem fronteiras está terminando

Os países aceleram esforços para controlar os dados produzidos em seus territórios, interrompendo o fluxo do que se tornou uma espécie de moeda digital

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Privacidade de dados: como países tentam controlar fluxo

David McCabe Adam Satariano
Nova York | The New York Times

Toda vez que enviamos um email, tocamos em um anúncio do Instagram ou passamos nossos cartões de crédito, criamos um dado digital.

As informações percorrem o mundo na velocidade de um clique, tornando-se uma espécie de moeda sem fronteiras que sustenta a economia digital. Em grande parte não regulamentado, o fluxo de bits e bytes ajudou a alimentar a ascensão de megaempresas transnacionais como Google e Amazon e reformulou as comunicações, o comércio, o entretenimento e a mídia globais.

Agora a era de fronteiras abertas para os dados está terminando.

Países estão acelerando os esforços para controlar os dados produzidos dentro de seus perímetros, interrompendo o fluxo do que se tornou uma espécie de moeda digital - John Provencher/The New York Times

França, Áustria, África do Sul e mais de 50 outros países estão intensificando os esforços para controlar as informações digitais produzidas por seus cidadãos, agências governamentais e corporações. Movidos por preocupações com segurança e privacidade, bem como interesses econômicos e forças autoritárias e nacionalistas, os governos estão cada vez mais definindo regras e padrões sobre como os dados podem ou não podem se movimentar pelo mundo. O objetivo é adquirir a "soberania digital".

Leis sobre informação digital

  • Estados Unidos

    O governo Biden está fazendo circular um rascunho inicial de uma ordem executiva destinada a impedir que rivais, como a China, acessem dados americanos.

  • União Europeia

    Juízes e formuladores de políticas aumentam os esforços para proteger as informações geradas no bloco de 27 países, incluindo exigências mais rígidas de privacidade online e regras para inteligência artificial.

  • Índia

    Legisladores estão agindo para aprovar uma lei que limitaria os dados que podem sair do país de quase 1,4 bilhão de habitantes.

  • Mundo

    O número de leis, regulamentos e políticas governamentais que exigem que as informações digitais sejam armazenadas em um país específico mais que dobrou de 2017 a 2021, chegando a 144, de acordo com a Fundação da Tecnologia da Informação e Inovação.

Embora países como a China tenham isolado seus ecossistemas digitais há muito tempo, a imposição de mais regras nacionais sobre os fluxos de informação representa uma mudança fundamental no mundo democrático e altera a forma como a internet opera desde que se tornou amplamente comercializada, na década de 1990.

As repercussões para as operações comerciais, a privacidade e como os órgãos policiais e de inteligência investigam crimes e executam programas de vigilância têm longo alcance. Microsoft, Amazon e Google estão oferecendo novos serviços para permitir que empresas armazenem registros e informações dentro de um determinado território. E a movimentação de dados se tornou parte das negociações geopolíticas, incluindo um novo pacto para compartilhar informações através do Atlântico, que foi acordado em princípio em março.

"O volume de dados se tornou tão grande na última década que gerou pressão para colocá-los sob controle soberano", disse Federico Fabbrini, professor de direito europeu na Universidade da Cidade de Dublim, que editou um livro sobre o assunto e argumenta que dados são inerentemente mais difíceis de regulamentar do que bens físicos.

Para a maioria das pessoas, é improvável que as novas restrições fechem sites populares. Mas os usuários podem perder o acesso a alguns serviços ou recursos, dependendo de onde moram. A Meta, empresa controladora do Facebook, disse recentemente que deixaria temporariamente de oferecer filtros de realidade aumentada no Texas e em Illinois para evitar ser processada sob as leis que regulam o uso de dados biométricos.

O debate sobre a restrição de dados ecoa fraturas maiores na economia global. Os países estão repensando sua dependência de linhas de montagem estrangeiras depois que as cadeias de suprimentos falharam na pandemia, atrasando as entregas de tudo, de geladeiras a caminhonetes. Temendo que os produtores asiáticos de chips para computador sejam vulneráveis à influência de Pequim, legisladores americanos e europeus estão pressionando para construir mais fábricas domésticas para os semicondutores que movem milhares de produtos.

A mudança de atitude em relação à informação digital está "ligada a uma tendência mais ampla de nacionalismo econômico", disse Eduardo Ustaran, sócio do escritório de advocacia Hogan Lovells, que ajuda empresas a cumprir as novas regras sobre dados.

A ideia central da "soberania digital" é que o escape digital criado por uma pessoa, empresa ou governo deve ser armazenado dentro do país de origem, ou pelo menos tratado de acordo com a privacidade e outros padrões estabelecidos por um governo. Nos casos de informações mais confidenciais, algumas autoridades querem que também sejam controladas por uma empresa local.

Isso é uma mudança em relação a hoje. A maioria dos arquivos foi inicialmente armazenada localmente em computadores pessoais e mainframes da empresa. Mas à medida que a velocidade da internet aumentou e a infraestrutura de telecomunicações avançou nas últimas duas décadas, os serviços de computação em nuvem permitiram que uma pessoa na Alemanha armazenasse fotos num servidor do Google na Califórnia, ou uma empresa na Itália administrasse um site da Amazon Web Services operado em Seattle (EUA).

Um ponto de inflexão ocorreu depois que o colaborador em segurança nacional Edward Snowden vazou dezenas de documentos em 2013 que detalhavam a vigilância generalizada das comunicações digitais nos EUA. Na Europa, aumentaram as preocupações de que a dependência de empresas americanas como Facebook deixasse os europeus vulneráveis à espionagem dos EUA. Isso levou a longas disputas jurídicas sobre privacidade online e negociações transatlânticas para proteger comunicações e outras informações transportadas para empresas americanas.

As consequências ainda estão sendo sentidas.

Enquanto os Estados Unidos apoiam uma abordagem livre e não regulamentada que permite que os dados passem entre nações democráticas sem obstáculos, a China uniu-se à Rússia e a outros para isolar a internet e manter os dados ao alcance para vigiar os cidadãos e reprimir a dissidência. A Europa, com mercados fortemente regulamentados e regras sobre privacidade de dados, está trilhando outro caminho.

Na União Europeia, os dados pessoais dos cidadãos devem seguir uma lei de privacidade online, o Regulamento Geral de Proteção de Dados, que entrou em vigor em 2018. Outro projeto de lei, a Lei de Dados, aplicaria novos limites sobre quais informações corporativas poderiam ser disponibilizadas aos serviços de inteligência e outras autoridades fora do bloco, mesmo com ordem judicial.

O governo Biden elaborou recentemente uma ordem executiva para dar ao governo mais poder para bloquear acordos envolvendo dados pessoais de americanos que representam risco para a segurança nacional, segundo duas pessoas informadas sobre o assunto. Um funcionário do governo disse que o documento, que a Reuters noticiou anteriormente, era um rascunho inicial enviado às agências federais para comentários.

Mas Washington tentou manter os dados fluindo entre os Estados Unidos e seus aliados. Em uma viagem em março a Bruxelas para coordenar uma resposta à invasão da Ucrânia pela Rússia, o presidente Joe Biden anunciou um novo acordo para permitir que dados da UE continuem fluindo para os EUA.

O acordo foi necessário depois que o principal tribunal europeu derrubou um acordo anterior em 2020 porque não protegia os cidadãos europeus da espionagem por autoridades americanas, pondo em risco as operações de milhares de empresas que transmitem dados através do Atlântico.

Em uma declaração conjunta em dezembro, Gina Raimondo, secretária de Comércio dos Estados Unidos, e Nadine Dorries, principal ministra digital da Grã-Bretanha, disseram que esperavam neutralizar "as tendências negativas que correm o risco de fechar os fluxos de dados internacionais". O Departamento de Comércio americano também anunciou no mês passado que estava se unindo a várias nações asiáticas e ao Canadá para manter o fluxo de informações digitais entre os países.

À medida que novas regras foram adotadas, a indústria de tecnologia disparou alarmes. Grupos representando Amazon, Apple, Google, Microsoft e Meta argumentaram que a economia online foi alimentada pelo livre fluxo de dados. Se as empresas de tecnologia fossem obrigadas a armazenar tudo localmente, não poderiam oferecer os mesmos produtos e serviços em todo o mundo, afirmaram.

Os países, entretanto, reprimiram de qualquer modo. Na França e na Áustria, os clientes do software de medição de internet Google Analytics, que é usado por muitos sites para coletar números de audiência, foram instruídos este ano a não usar mais o programa porque poderia expor os dados pessoais de europeus à espionagem americana.

No ano passado, o governo francês cancelou um acordo com a Microsoft para lidar com dados relacionados à saúde, depois que as autoridades foram criticadas por conceder o contrato a uma empresa americana. As autoridades se comprometeram a se associar a firmas locais.

As empresas se ajustaram. A Microsoft disse que está tomando medidas para que os clientes possam manter os dados mais facilmente em determinadas áreas geográficas. A Amazon Web Services, maior serviço de computação em nuvem, disse que permite que os clientes europeus controlem onde são armazenados os dados.

Na França, Espanha e Alemanha, o Google Cloud assinou acordos no ano passado com provedores locais de tecnologia e telecomunicações para que os clientes possam garantir que seus dados sejam supervisionados por uma empresa local enquanto usam os produtos Google.

"Queremos encontrá-los onde estão", disse Ksenia Duxfield-Karyakina, que lidera as operações de políticas públicas do Google Cloud na Europa.

Liam Maxwell, diretor de transformação governamental da Amazon Web Services, disse em comunicado que a empresa se adaptará às regulamentações europeias, mas que os clientes deveriam poder comprar serviços de computação em nuvem conforme suas necessidades, "e não limitados pela localização do provedor de tecnologia". ​

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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