Poder de compra do Estado e inovação

Em artigo publicado no Valor Econômico, Pedro Wongtschowski defende que é preciso conduzir processos de compras mais complexos, guiados por outros critérios além de menor preço

O mundo está mobilizado em busca de uma vacina contra o coronavírus. Dessa descoberta científica depende o retorno mais seguro das atividades industriais, reabertura plena do comércio e serviços e retomada do convívio social. Enquanto isso não ocorrer, talvez sejam comuns situações como as que acompanhamos na Europa e nos EUA, de recrudescimento dos casos de infecção e das medidas de isolamento em combate a uma segunda onda da pandemia. 

A vacina representa, portanto, uma resposta à questão sanitária e, também, à crise econômica global. Por essas razões, as compras, pelo governo federal e por diversos governos estaduais de vacinas, em regime de cooperação e transferência de tecnologia, devem ser consideradas ações estratégicas e acertadas. Essa medida nos coloca ao lado de países que estão em busca da imunização para superar a maior crise de saúde do último século.


“É preciso conduzir processos de compras mais complexos, guiados por outros critérios além de menor preço”


Mas, para além do mérito da aquisição em si, é digno de nota que as compra de vacinas se deram sob a forma de uma encomenda tecnológica - um feito raro no Brasil. Essa modalidade de aquisição governamental está presente na legislação brasileira desde 2004, mas ainda é bem pouco utilizada. O instrumento foi recentemente revisto e aprimorado por meio do Marco Legal de Inovação, aprovado em 2016 e regulamentado em 2018. 

Os novos termos trouxeram maior segurança jurídica para o seu uso na gestão pública ao tornar claro o seu propósito: aquisição de soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico. Nesse sentido, o Estado se dispõe a compartilhar o risco de desenvolvimento de um produto ou serviço não disponível no mercado, mas necessário para responder a desafios já postos. Essa é exatamente a situação atual: a demanda urgente por uma vacina contra a covid-19 que ainda não existe para comercialização. 

O volume de recursos alocados pelo poder público em compras governamentais justifica o convite à reflexão sobre a aplicação de forma mais estratégica desses valores. Dentre os países que compõem a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), estima-se que as nações despendam cerca de 12% do Produto Interno Bruto (PIB) em compras públicas, mesma proporção que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estima para países da América Latina. 

No caso do Brasil, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) apontou uma média de gastos da ordem de 10% do PIB. Apenas em 2016, foram alocados cerca de R$ 633 bilhões em aquisições governamentais. Fica claro que há oportunidade para utilizar parte desse poder de compra para impulsionar a ciência, tecnologia e inovação no país.

Para isso, uma das opções seria direcionar os recursos do orçamento à superação de problemas econômicos e sociais, por meio de soluções nacionais inovadoras, desenvolvidas e produzidas conjuntamente pelo Estado, setor empresarial e instituições de ensino e pesquisa (ICTs). 

Esse modelo já é bastante difundido no exterior e tende a ganhar cada vez mais evidência diante do cenário de restrições orçamentárias e pressões por maior efetividade do gasto público. Os Estados Unidos são considerados um caso clássico. Apresentando legislação extensa, mas flexível, o país faz uso inteligente das compras públicas ao conferir tratamento diferenciado para pesquisa e desenvolvimento.

Ganham destaque as ações capitaneadas pelo Departamento de Defesa. As demandas do governo americano nessa área são atendidas por empresas e ICTs e muitas delas se tornam produtos de prateleira ao consumidor final. Foi assim que nasceu a internet, o GPS e tantos outros produtos consumidos por todos nós no mundo inteiro. 

O Brasil precisa despertar para esse movimento em favor do uso do poder de compra para promover inovação e, consequentemente, crescimento econômico. Essa também deve ser vista como ação estratégica e de retomada do crescimento em período de crise e de pós-crise, pelos quais estamos passando. As compras da vacina contra covid-19 representam um passo relevante nessa direção. 

Mas para que seja possível uma atuação mais incisiva em todas as esferas da administração pública, é preciso adequar a legislação para diminuir a burocracia e dar segurança jurídica aos gestores públicos, sem que isso represente qualquer ameaça ao uso adequado dos recursos. É possível se inspirar na experiência da encomenda tecnológica, hoje amparada por dispositivos bem definidos e material técnico de apoio produzido por instituições de referência como o Ipea e o Tribunal de Contas da União (TCU). 

Nesses termos, a Mobilização Empresarial pela Inovação (MEI), criada e coordenada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), defende a aprovação do Projeto de Lei 1292/1995, que permitirá modernizar a legislação sobre compras públicas, no sentido de facilitar o uso estratégico para fins de promoção da ciência, tecnologia e inovação. O projeto aguarda votação no Senado Federal. 

Como parte dessa agenda, também é preciso capacitar gestores em processos de compras públicas de soluções inovadoras. Como se observa em outros países, é de suma importância preparar os técnicos de governo para conduzir processos de compras mais complexos, que não são guiados por critérios simples de menor preço. 

O momento exige respostas rápidas e a implementação dessas medidas. O Brasil precisa enxergar as compras públicas como alavanca para a inovação, que deve estar entre as prioridades da agenda. Uma agenda comprometida com a eficiência do gasto público e com o crescimento econômico.

Pedro Wongtschowski é líder da MEI e presidente do Conselho de Administração da Ultrapar e da Embrapii

*O artigo foi publicado no Valor Econômico, no dia 2 de dezembro.

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