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Por João Gabriel de Lima, de Lisboa, para Um Só Planeta

Se o fantasma de Fernando Pessoa ainda habita a casa onde o poeta passou a maior parte da vida, certamente se inspira à sombra das figueiras e jacarandás do Jardim da Estrela. O parque, um dos mais belos de Lisboa, fica a 230 metros do número 16 da rua Coelho da Rocha -- ou a apenas 3 minutos de caminhada, segundo o Google Maps. Eis uma estatística que orgulha os lisboetas: 85% dos moradores da cidade estão a no máximo 300 metros de um parque de médio ou grande porte.

Aí vai outra: Lisboa tem 41 metros quadrados de área verde por habitante, mais que o triplo do mínimo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (12 metros quadrados). A capital portuguesa é mundialmente famosa por suas colinas com mirantes, de onde se avista um casario belíssimo, com o rio Tejo ao fundo. De dez anos para cá, no entanto, o que encanta os moradores e surpreende os turistas é a quantidade de verde. Não à toa, em tempos de trabalho remoto, aumenta o fluxo de europeus do norte chuvoso em direção a uma Lisboa ensolarada e cada vez mais aprazível.

Em 2020, Lisboa foi escolhida a Capital Verde da Europa. Tornou-se a primeira capital do sul do continente a receber o cobiçado prêmio. Os jurados destacaram a evolução significativa da cidade em seis quesitos ambientais: gestões de energia, água e resíduos, mobilidade, biodiversidade e estrutura verde. Foi este último item que mais os impressionou. De dez anos para cá, foram plantados 71 000 árvores e 105 000 arbustos.

Praça em Lisboa: de dez anos para cá, foram plantados 71 000 árvores e 105 000 arbustos. — Foto: Claudia Maximino
Praça em Lisboa: de dez anos para cá, foram plantados 71 000 árvores e 105 000 arbustos. — Foto: Claudia Maximino

A cidade inaugurou 43 novos parques e praças, sem contar a revitalização dos já existentes. Ao todo, 300 hectares de verde foram acrescentados à malha urbana. Essa revolução envolveu a sociedade civil, empresas sediadas em Lisboa e teve pelo menos dois líderes: um político ecologista de esquerda e um arquiteto conservador e monarquista. Mais uma prova de que o diálogo entre divergentes costuma trazer bons resultados nas democracias.

O marco inicial da revolução verde foi o ano de 2007. O vereador José Sá Fernandes apresentou, junto com o Bloco de Esquerda, o Plano Verde de Lisboa. As linhas gerais do projeto haviam sido traçadas por Gonçalo Ribeiro Telles, militante político longevo – ele foi um dos fundadores do Partido Popular Monárquico, em 1979, e do Movimento Partido da Terra, em 1993.

“A beleza de Lisboa vem do fato de ser uma cidade com vales e colinas com mirantes. Tem um clima de sul da Europa, quente na primavera e no verão, com muitas chuvas no inverno”, diz Sá Fernandes. “Por isso, precisamos de zonas de sombra e de lugares onde seja possível a drenagem de água”. O projeto previa a criação de parques nos vales, recomendava que se evitassem construções em encostas e ambicionava integrar as áreas verdes espalhadas por vários pontos da cidade.

Banquinho sob o sol:  cidade inaugurou 43 novos parques e praças, sem contar a revitalização dos já existentes. — Foto: Claudia Maximino
Banquinho sob o sol: cidade inaugurou 43 novos parques e praças, sem contar a revitalização dos já existentes. — Foto: Claudia Maximino

Sá Fernandes define o projeto como simples no conceito, mas difícil na execução. Num primeiro momento, seria necessário parar várias obras de urbanização que já haviam sido contratadas. Isso foi feito, mediante negociação com construtoras. Em governos anteriores, os moradores das encostas já haviam sido realocados para outros pontos da cidade – o que teve um custo social, pois criaram-se guetos em bairros longe do centro. Havia uma demanda da população não apenas por novos parques, mas por uma solução para os deslizamentos nas chuvas torrenciais de inverno.

Para haver uma real adesão da sociedade civil, no entanto, não bastava evitar as consequências das intempéries e deter o furor imobiliário. Era necessário criar uma agenda positiva. “É mais fácil convencer pela coisa bem feita que atacar a coisa mal feita”, repetia Ribeiro Telles. A coisa bem feita, no caso, seria o primeiro grande marco da nova feição de Lisboa: o Corredor Verde ligando o Monsanto ao Parque Eduardo VII.

O objetivo da empreitada era enlaçar dois emblemas da cidade. O Parque Ecológico do Monsanto tem mil hectares e é a única floresta urbana europeia certificada pelo Forest Stewardship Council. A FSC, fundada sob inspiração da Rio 92, tem sede em Bonn, na Alemanha, e é referência em administração florestal sustentável. O Monsanto foi idealizado no século 19, inspirado no Bois de Bologne de Paris, mas só saiu do papel na primeira metade do século 20.

Parque Ecológico de Monsanto, em Lisboa: floresta urbana certificada pelo Forest Stewardship Council. — Foto: Claudia Maximino
Parque Ecológico de Monsanto, em Lisboa: floresta urbana certificada pelo Forest Stewardship Council. — Foto: Claudia Maximino

No século 21, com um manejo mais de acordo com os padrões modernos de sustentabilidade, ganhou em viço e biodiversidade. Em 2012, no entanto, ainda era uma área de difícil acesso, desconectada dos bairros centrais de Lisboa. Já há algumas décadas Ribeiro Telles tinha um projeto para ligá-lo ao Parque Eduardo VII, o mais central de Lisboa, situado no topo da principal artéria da cidade – a Avenida da Liberdade. Sob a liderança de Sá Fernandes, a Câmara Municipal de Lisboa tirou o projeto do papel.

 — Foto: Claudia Maximino
— Foto: Claudia Maximino

“Ouço falar nesse Corredor Verde desde os anos 1970. Fico contente que meus antecessores não o tenham feito, caso contrário eu não estaria aqui agora”, disse, com bom humor, na inauguração do projeto, o então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa (em Portugal as cidades são “parlamentaristas”.

Quem governa é o presidente da Câmara. Costa, que pertence ao Partido Socialista, é hoje o primeiro-ministro de Portugal. Choveu bastante no dia 14 de dezembro de 2012, data da inauguração do Corredor Verde de Monsanto. O que não impediu que Costa, Sá Fernandes e Ribeiro Telles – então com 90 anos de idade – fizessem o percurso envergando elegantes impermeáveis.

“Nos dias seguintes, quando o tempo melhorou, o Corredor já estava cheio de gente”, diz Sá Fernandes. Era a tal “coisa bem feita” que faltava para convencer a cidade. As árvores do Corredor foram plantadas em mutirão por funcionários da administração pública de Lisboa. Nos corredores inaugurados desde então – foram mais cinco a partir de 2012 – os próprios cidadãos alfacinhas, como são conhecidos os lisboetas, fizeram questão de plantar as árvores, como voluntários.

Lisboa: espaços de lazer ao ar livre para praticar esportes e curtir a natureza. — Foto: Claudia Maximino
Lisboa: espaços de lazer ao ar livre para praticar esportes e curtir a natureza. — Foto: Claudia Maximino

O Corredor Verde de Monsanto definiu um padrão para os similares que se sucederam. Todos eles têm áreas para caminhada de pedestres, ciclovias, árvores por quase todo o percurso, hortas comunitárias e espaços de lazer. Eles seguem a filosofia do projeto de revitalização das praças da cidade, iniciado também em 2007. Todas elas têm parques infantis e quiosques para cafés, chamarizes para as famílias de frequentadores. Nos meses duros da pandemia, as praças e corredores foram um escape para os lisboetas, cada vez mais acostumados a viver ao ar livre.

Para interligar as áreas verdes, muitas vezes foi necessário construir, sobre as grandes avenidas da cidade, passarelas para pedestres e pontes para ciclistas. O envolvimento da iniciativa privada foi fundamental. Empresas como Vodafone, Galp, Supermercados Pingo Doce e Rock In Rio patrocinaram algumas das pontes dos corredores verdes. O Parque Monsanto, antes isolado da cidade, hoje tem cinco entradas, com acesso a partir de bairros diferentes. Lá dentro há vários caminhos para pedestres, áreas de lazer, ciclovias e dois mirantes.

Lisboa: passarelas para ciclistas e pedestres interligam áreas verdes na cidade. — Foto: Claudia Maximino
Lisboa: passarelas para ciclistas e pedestres interligam áreas verdes na cidade. — Foto: Claudia Maximino

Se o Monsanto se destaca pelo jeitão de floresta, cada jardim de Lisboa cultiva uma personalidade própria. A Tapada das Necessidades, entre os bairros de Santos e Campo de Ourique, deslumbra pelo incrível bosque de cactos – ao qual se chega depois de passar pela brigada de gansos barulhentos que habitam o local.

O jardim mais famoso da cidade, o que circunda a sede modernista da Fundação Calouste Gulbenkian, permite ao visitante alternar clareiras e zonas frondosas. O bosque é uma das obras primas de Ribeiro Telles. O jardim da Gulbenkian lhe valeu, em 1975, o Prêmio Valmor – um dos mais importantes da arquitetura portuguesa – ao lado de Antonio Viana Barreto, seu parceiro na empreitada.

Lisboa: primeira capital do sul do continente a receber o cobiçado prêmio. — Foto: Claudia Maximino
Lisboa: primeira capital do sul do continente a receber o cobiçado prêmio. — Foto: Claudia Maximino

Ribeiro Telles morreu em novembro do ano passado, aos 98 anos. Em seu obituário, o jornal “O Público” o chamou de “fabricante de paisagens” e “construtor de utopias”. “Todos nós que estamos envolvidos com os parques de Lisboa o temos como mestre e inspirador”, diz Sá Fernandes, atualmente o vereador responsável pelas áreas de Ambiente, Clima, Energia e Estrutura Verde na Câmara de Lisboa.

Em um bar da Avenida da Liberdade, ao lado de um grupo de amigos, Ribeiro Telles rascunhou o Artigo 66 da Constituição Portuguesa: “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado -- e o dever de o defender”. A Carta foi promulgada em 1976, dois anos depois da revolução democrática dos Cravos e muito antes que palavras como “ambiente” e “ecologicamente equilibrado” se tornassem recorrentes no debate político.

Fernando Pessoa conviveu pouco com o verde. A Lisboa que aparece em seus poemas é a do Largo do Rossio, dos cafés e restaurantes, da famosa tabacaria. Ele admitiu que o “sino da minha aldeia”, imortalizado em seus versos, não pertence a nenhuma cidadezinha bucólica – foi inspirado, na verdade, no sino de uma igreja do Bairro Alto, no centro de Lisboa.

Sua conexão com o verde era platônica e surge na poesia de um dos heterônimos, Alberto Caeiro: “Eu amo as flores por serem flores, diretamente/ Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento”. Plantando árvores e construindo parques, os cidadãos alfacinhas fizeram com que o verde de Alberto Caeiro invadisse a Lisboa árida e urbana de Fernando Pessoa.

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