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Escritórios voltarão a ser espaços masculinos no mundo pós-covid?

Série "Mad Men" mostrou disparidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho - Divulgação
Série "Mad Men" mostrou disparidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho Imagem: Divulgação

Matheus Pichonelli

Colaboração para Universa

03/11/2020 04h00

Em meados de outubro, Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora-executiva da ONU Mulheres, causou arrepios ao dizer que a maior mudança no ambiente do trabalho após a covid-19 poderia ser a ausência de mulheres do ambiente corporativo.

"Há o risco de as mulheres optarem pelo trabalho remoto, e os escritórios e fábricas se tornarem lugares onde apenas os homens vão", afirmou a sul-africana.

O diagnóstico é baseado em estudos que indicam a sobrecarga e a responsabilização das mulheres pelos cuidados domésticos durante a pandemia. "Trabalhamos tanto para dizer que o lugar de uma mulher não é na cozinha. Não queremos que o coronavírus diga que o lugar de uma mulher é em casa, que ela se sentará em sua cozinha com um laptop, e que o lugar do homem é no escritório", alertou Phumzile.

O risco é real?

A pergunta foi feita por Universa a quatro especialistas que já observam impactos da pandemia na organização do trabalho. Bárbara Castro, professora do Departamento de Sociologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) com pesquisas relacionadas a estudos de gênero e flexibilização do trabalho, afirma que momentos de crise, como a que já mostra as caras com a covid-19, causam dois movimentos.

Um deles é que as mulheres puxam a fila das demissões nas empresas. Isso decorre, por exemplo, de uma mentalidade segundo a qual os homens são os principais provedores da casa e o salário das mulheres é acessório. "Geralmente, o que a gente vê é que, em caso de cortes grandes, os homens na faixa de 40 e 50 anos são os mais preservados."

Um outro movimento, já observado em pesquisas anteriores, é que, na onda de demissões, mulheres aceitam procurar empregos que paguem menos, enquanto os homens optam por ficar um tempo desempregados à espera de uma ocupação similar à anterior. Neste movimento, é comum, por exemplo, mulheres demitidas das fábricas começarem a trabalhar como faxineiras.

Para a especialista, é complicado cravar que escritórios vão se tornar lugares predominantemente masculinos diante da crise atual.

Com base em estudos recentes, feitos durante a pandemia, a professora diz que a ONU tem razão em apontar a problemática da sobrecarga feminina na gestão do espaço doméstico. "Daí a pensar que o futuro pós-covid vai se traduzir num espaço em que mulheres voltem ao trabalho doméstico e as empresas serão lugares de homens vai um salto grande", afirma.

Segundo ela, é preciso observar o tempo que essa situação de restrições vai durar, mas alerta: a curto prazo o cenário pode provocar uma espécie de corrosão da carreira, sobrecarga emocional e doenças físicas e mentais. Isso pode levar, a longo e médio prazo, algumas profissionais a pedirem demissão ou deixarem de lado os planos de carreira.

Bárbara Castro lembra que, na outra ponta, porém, muitas mulheres não puderam parar de trabalhar, estão pegando ônibus e se arriscando sem contar ainda com uma rede de cuidados ou com políticas públicas voltadas para elas.

"Enquanto houver isolamento social e a pandemia não terminar, vai ser muito difícil que elas ocupem lugar de igualdade e competitividade no mercado de trabalho."

Pandemia acentua desvantagem que já existia

De acordo com a socióloga e ativista do movimento negro Nathalia Oliveira, é ainda difícil delimitar o antes e o pós-pandemia. "A luta histórica e a inserção de mulheres no mercado de trabalhos sempre esbarraram na sobrecarga. Quando um homem e uma mulher trabalham na mesma casa e precisam adaptar suas rotinas, ficou escancarado que as mulheres já se responsabilizavam por outros afazeres, como os cuidados com os filhos e com a casa. Não é a pandemia que cria essa sobrecarga. Ela acentua", diz.

Nathalia lembra que, na ótica de muitas empresas, a mulher pode eventualmente vir a ser mãe e gerar uma série de "gastos". Essa ótica, segundo ela, parte de uma perspectiva machista e coloca apenas às mulheres a responsabilidade de cuidados com o filho -quando, na verdade, uma criança, gerada por duas pessoas, é uma responsabilidade social que exige políticas públicas e divisão justa de tarefas.

"Dizer que os espaços de trabalho vão se tornar mais masculinos não é necessariamente um efeito da pandemia, mas uma acentuação de situações de diferença de gênero que colocam as mulheres em desvantagem nos espaços profissionais em que já estavam colocadas."

A socióloga lembra que, em um cenário de recessão econômica, com diminuição de recolhimento de impostos e financiamento de políticas públicas, as mulheres se tornam pontas delicadas nas negociações sobre decisões no âmbito privado. "É um retrocesso que novamente concentra a responsabilidade de cuidados a uma função naturalizada a mulheres."

O resultado disso, segundo ela, é que o homem volta a ser o pilar de sustento da casa e a mulher fica condicionada a esse sujeito. "Isso, na esfera privada, pode reproduzir uma série de interdependências e levar a situações de opressões, como violência doméstica, humilhações e discriminações por condições econômicas."

Ambiente corporativo deveria ser mais receptivo às mulheres

Beatriz Sanchez, doutoranda em ciência política e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), afirma que os ambientes corporativos já eram, em certa medida, hostis às mulheres antes da pandemia.

"Elas já eram sujeitas a vivenciar episódios de violência de vários tipos no ambiente de trabalho. Com a pandemia, um aspecto que pode ter sido agravado tem relação com a divisão sexual do trabalho. Com a pandemia, a sobrecarga de trabalho delas aumentou ainda mais", diz Beatriz. "Dessa forma, as pressões sofridas no ambiente de trabalho, seja em home office ou presencialmente, podem ter tido impactos sobre a saúde física e mental das mulheres. Muitas tiveram dificuldade de conciliar o home office com as demandas dos filhos, dos maridos que também estavam em casa e, ao mesmo tempo, tendo de realizar todas as tarefas domésticas", diz.

Segundo a pesquisadora, seria importante, no atual contexto, que o ambiente corporativo adotasse medidas que tornassem os escritórios espaços mais receptivos às mulheres mães, por exemplo. Ela lembra que algumas empresas já oferecem, por exemplo, creches e espaços para aleitamento materno. "A promoção de campanhas de conscientização que defendam a igualdade de gênero pode contribuir para tornar o ambiente corporativo mais receptivo às mulheres", afirma.

Segundo Fábio Araújo Tadeu, economista e sócio da Brain Inteligência, empresa especializada em setor imobiliário, aspectos jurídicos devem impedir que os espaços corporativos sejam remodelados para que, por exemplo, as mães possam ficar com os filhos que não tenham com quem deixar.

Em vez disso, o economista diz que os gestores terão de entender a diferença de turnos e horários e promover uma cultura em que a mulher e o homem possam dividir essa flexibilidade. Segundo o economista, o home office veio para ficar, mas não será a única forma de trabalho em muitos lugares.

Arquitetos e incorporadores já planejam escritórios para receber cada vez menos pessoas e tornar o trabalho mais flexível, com profissionais tendo de se deslocar até a empresa em dois ou três dias da semana.

Empresa deve estimular homem a assumir papel na divisão do trabalho com os filhos

Essas mudanças, afirma Fábio, já estão acontecendo. E, neste novo cenário, aspectos culturais e econômicos podem pesar para as mulheres. "O casal faz a opção de quem vai cuidar mais dos filhos e a mulher abre mão porque o salário do homem é geralmente maior. Além disso, é possível que elas estejam mais no processo de home office ou abrindo mão do trabalho por um período pra ficar mais próximas dos filhos."

Neste contexto, o economista defende que as empresas estimulem o homem a assumir sua parte na divisão do trabalho junto aos filhos, inclusive no acompanhamento escolar, no período em que o convívio entre eles será cada vez maior. "Isso exige mais uma mudança cultural do que uma mudança no ambiente físico das empresas", afirma.