Epidemia acelera automatização, mas país perde incentivos para tecnologia

Crise ameaça pesquisa e desenvolvimento; indústrias que já eram inovadoras antes avançam em 2020

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São Paulo

As empresas industriais que mais inovavam foram aquelas que outra vez mais inovaram no primeiro ano da epidemia, mostra pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Essas empresas tiveram lucros ligeiramente melhores, empregaram mais gente e ficaram ainda mais à frente em um panorama árido de inovação.

As dificuldades impostas por distanciamento social e restrições de circulação aceleraram a adoção de tecnologias que já estavam nos planos ou eram tendência, em particular de softwares de automatização de processos (administrativos, produtivos ou até de marketing). Mas é cedo para saber de rupturas ou mudanças de rota, se houve, dizem empresários e economistas.

Até mesmo uma especulação muito ruidosa sobre a mudança na organização dos locais do trabalho, estimulada pela disseminação emergencial do teletrabalho é motivo de grande dúvida.

Menos incerto é o impacto que a crise econômica causada pela epidemia terá sobre o financiamento público da pesquisa científica e do desenvolvimento tecnológico (P&D). A política federal de contenção de despesas tira recursos diretos desse setor. A mudança constitucional que em tese obriga o governo a reduzir isenções para quem investe em inovação tecnológica pode ser outro baque. Trata-se de uma das determinações da PEC Emergencial, emenda que autorizou gasto extra em auxílio e estipula contenção de despesas com servidores, por exemplo.

Entre outras mudanças, a PEC obriga o presidente a enviar ao Congresso daqui a seis meses um plano de redução de gastos tributários, que deveriam cair do equivalente a cerca de 4% para 2% do PIB em oito anos. Muitos desses benefícios tributários são incentivos à inovação tecnológica.

Na ilustração, na laterais vemos estruturas como se fosse pedras cinzas. O solo é marrom e o céu, azul. No fundo, há um quadrado preto com um círculo vermelho dentro.
Rodrigo Visca

A situação já se deteriorava mais ou menos desde 2014, pelo menos. Os cortes de gastos recaem principalmente sobre investimento público e ciência. Outras crises reduziram os investimentos em ciência de setores como o de petróleo, um líder em P&D. Agora, deve haver um impacto forte com a PEC, observa Fernanda Negri, economista e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Ipea, o instituto federal de pesquisa econômica e social.

“Em tese, [a PEC Emergencial] pode acabar com instrumentos de financiamento e incentivo a pesquisa e desenvolvimento. Mas os setores atingidos estão em negociações com o Congresso, faltam definições. É um risco sério para um país que ainda pretenda ter uma indústria”, diz Rafael Luchesi, diretor-geral do Senai e diretor de educação e tecnologia da CNI.

Faltam dados, mas Jorge Arbache diz que nota e ouve relatos de adoção mais intensiva de ferramentas tecnológicas, uma antecipação do seu uso. “Não diria que é um processo inovador, mas de aceleração de adoção de tecnologias prontas. Aconteceria de qualquer modo. Há um processo de ‘commoditização’ de tecnologias (simplificação para uso padrão, grosso modo). Como em pacotes de softwares para automatizar processos contábeis. Existe commoditização até de maquinário avançado, o que pode ter efeito na demanda de trabalho”, diz o economista, estudioso da indústria no país, vice-presidente de Setor Privado do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e professor licenciado da Universidade de Brasília (UnB).

Quanto ao efeito da epidemia na inovação, Luchesi diz também que falta informação mais precisa sobre um processo ainda em andamento. De mais notável é a aceleração do emprego de tecnologia de automatização de processos.

A pesquisa da CNI sobre efeitos da epidemia na indústria em 2020 mostrou que 71% das empresas que adotavam quatro ou mais tecnologias 4.0 inovaram na epidemia. Das que não adotavam, 37% inovaram. Exemplos de tecnologias 4.0: “big data”, inteligência artificial, impressão 3D, softwares de gestão avançada da produção, computação em nuvem ou sistemas de conexão máquina-máquina.

Além de tratar dos danos ao financiamento de P&D, um assunto central do debate tem de ser a “a agenda sanitária”. Segundo o economista, a emergência de saúde, a escassez —de máscaras a respiradores, de remédios a vacinas— indica que o país não pode descuidar de ter uma base industrial no setor, o que depende de pesquisa de base (biologia da vacina, por exemplo) e do desenvolvimento de materiais e equipamentos.

“Fizemos esforços nessa área, de urgência, de reconversão industrial, de invenção de matérias primas, mas temos de pensar de modo mais estratégico nisso”, diz Luchesi.

O que se pode esperar de imediato no campo de inovação? Trabalho com menos emprego, processos mais inteligentes, redução de custos e sustentabilidade.

“Sustentabilidade veio para ficar e é de interesse dos países que tomam a dianteira: além de cuidarem de problemas ambientais, eles são os principais vendedores dessas tecnologias. Parte do projeto de recuperação econômica por meio de investimento e tecnologia ‘verdes’ é dar ímpeto à indústria que vende produtos ‘verdes’”, diz Arbache.

Como fazer P&D, que depende de muito investimento público em qualquer lugar do mundo, em momento de crise fiscal cada vez mais aguda?

“É preciso fazer ajustes regulatórios de modo a facilitar o investimento do setor privado. Parece uma abstração, mas muita coisa pode ser feita por aí. O impulso pode vir de setores em que o país tem vantagens comparadas e cresce rápido, como em agropecuária e bioeconomia”, diz Arbache.

Uma mudança muito discutida desde os primeiros dias da Covid-19 foi o teletrabalho, em particular o “home office” e seu impacto na organização do trabalho, na concentração de trabalhadores em espaços como escritórios (mas não só) e na forma de contratação. Embora não seja, no sentido estrito, inovação, a mudança teria implicações na construção civil, nas tecnologias de administração, no treinamento de mão de obra e nas cidades.

Luchesi acha que é muito cedo para avaliar. Que pode haver mudança incremental, talvez com melhoria da mobilidade em grandes cidades. Urbanistas de São Paulo acreditam em redução do espaço para escritórios.

Não é bem a opinião dos empresários do setor. “Muito home office matou o home office, por overdose e efeitos colaterais”, diz Walter Cardoso, presidente da CBRE no Brasil, maior empresa do mundo em negócios imobiliários comerciais. Segundo o executivo, faz mais de 35 anos nesse mercado, antes da epidemia havia a tendência de melhorar o ambiente de trabalho, o que se pode chamar de forma caricata de conceito de escritórios “Google”, mais acolhedores, com boas áreas de refeição e descanso, amplos, de ocupação menos densa. Grandes empresas elaboravam projetos nessa linha. A epidemia freou a tendência, que, no entanto, começa a ser retomada.

“As tendências vão ficar mais claras apenas com o controle da epidemia, em 2022. A elaboração mais profunda dessa experiência deve ocorrer mesmo em 2023. Mas acredito que o escritório é um espaço ‘co-co-co’, lugar de concentração, de conhecimento e de convívio. É um lugar de cultura, no sentido mais amplo do termo”, diz Cardoso.

“A ideia de abandono de escritórios e espaços coletivos, que foi uma especulação forte no início da epidemia, está sendo revista com muita força. No curto prazo, até por causa da recessão, vai haver alguma redução do custo de alugar espaço de escritórios. O efeito da adoção emergencial do ‘home office’ deve ser bem menor do que se imaginou. E a epidemia nem acabou”, diz Odair Senra, presidente do Sinduscon de São Paulo, associação das empresas da construção civil.

“Qualquer pessoa com experiência de empresa, de qualquer setor, sabe a falta que faz a interação ao vivo na contratação, no treinamento, na negociação, na discussão de soluções, até das ideias que surgem no café. Não é sensato abrir mão disso. Nós não vamos abrir mão”, diz Senra.

O ‘‘home office’’ afetou psicologicamente os funcionários, a ponto de precisarem de tratamento, diz Cardoso, o presidente da CBRE. ‘‘Prejudica o treinamento. Acho que haverá soluções híbridas, e foram desenvolvidos meios para utilizar esse método. Mas tem muitos efeitos colaterais. Então, volta-se a debater a necessidade de um novo tipo de espaço de escritório. As grandes empresas retomaram o planejamento da mudança”.

Sobre o impacto da mudança em inovação em geral, Cardoso acredita também que as empresas aceleraram a adoção de softwares para melhorar processos, serviços para clientes, marketing e presença em redes sociais.

“Empresas precisam de equipes bem-formadas, qualificadas, coesas. Quem tinha boas equipes conseguiu navegar melhor pela epidemia, com as adaptações do distanciamento. Mas como se desenvolve uma boa equipe e se formam novos quadros nessa situação? O treinamento fica muito prejudicado. A falta de interação ao vivo atrapalha tudo, da formação à discussão de novas ideias”, diz Senra, do Sinduscon-SP.

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